Introdução
Interpretar transcende a simples decodificação de símbolos; constitui‑se como um ato de moldagem do emergente simbólico, onde o intérprete não é receptor passivo, mas artífice do significado. Ricoeur (2005) defende que “a interpretação é mediação entre o texto e o mundo” (p. 112), insinuando uma tensão criativa que abre fendas interpretativas. Nesse campo, a interpretação assume caráter de gesto hermenêutico, trabalho artesanal de leitura que escava nuanças, tece sentidos e remolda a experiência vivida.
Enquanto a semântica referencial privilegia denotação, a hermenêutica existencial explora o potencial de polissemia. A metáfora viva, tal como descrita por Ricoeur, foi concebida como instrumento vasegônico, capaz de fundir domínios heteróclitos e inaugurar paisagens semânticas novas. Assim, ao interpretar, o sujeito não apenas descobre o sentido implícito, mas o cria, imprimindo‑lhe caráter singular e adaptado ao contexto existencial.
Adicionalmente, a elipse — omissão estratégica de elementos — e o paradoxo — articulação de ideias aparentemente contraditórias — configuram lacunas performativas que convidam o intérprete a um envolvimento ativo. Essas figuras de sintaxe e de pensamento transformam o ato hermenêutico em coreografia cognitiva, onde o silêncio e a contradição se tornam vectores de sentido.
1. A hermenêutica como artífice do sentido
Gadamer (1960) situa a compreensão na fusão de horizontes, processo no qual o intérprete projeta sua historicidade sobre o objeto de interpretação e é, em troca, transformado por ele. Essa dinâmica de entalpia semântica é semelhante à ação do ferreiro que molda o metal: o texto, o gesto ou a imagem são martelados pela intuição hermenêutica, adquirindo novas formas de significado.
Em um segundo momento, o intérprete recorre ao repertório cultural e pessoal para preencher elipses e tensionar paradoxos, mobilizando figuras como a anáfora — repetição enfática que cria cadência e reforça ideias-chave — e a ironia — inversão semântica que provoca deslocamentos reflexivos. Essas operações estilísticas não são meros adornos; atuam como ferramentas de escultura do sentido, calibrando a textura hermenêutica do fenômeno interpretado.
Por fim, a hermenêutica existencial reconhece o caráter inacabado de toda interpretação. Cada leitura abre espaço para revisões futuras, como um work in progress contínuo. O EIKÓNVERSE valoriza essa plasticidade, encorajando o consulente a ver sua narrativa pessoal como obra em construção, em permanente diálogo com o emergente.
2. Metáfora como estrutura interpretativa
A metáfora é, para Ricoeur (2005), “a metáfora viva”: lugar de surgimento de novo sentido, capaz de deslocar domínios cognitivos e emocionar a experiência. No EIKÓNVERSE, ela é considerada arché‑imagem, matriz criativa que rompe as fronteiras entre o conhecido e o por‑conhecer. Ao dizer “minha vida é um mosaico de ecos”, o sujeito não só descreve fragmentos, mas reorganiza‑os em nova configuração simbólica.
Essa capacidade vasegônica1 — fusão de domínios diversos — é potencializada por figuras de som como a aliteração e a assonância, que imprimem ritmo e musicalidade à metáfora. Por exemplo, “mosaico de memórias macias” utiliza a assonância vocálica em “o” para criar sensação de fluidez e profundidade.
Ademais, a metáfora estabelece um campo de ressonância onde o intérprete é convidado a experimentar múltiplas redes de sentido simultaneamente. Essa polissemia enriquece a leitura, permitindo que o emergente simbólico seja recebido com a complexidade íntima que lhe é devida.
Elipse e silêncios semânticos
A elipse, figura de sintaxe por omissão, gera vácuos interpretativos que convidam o leitor a completar o texto com sua própria experiência. Esses silêncios agem como vórtices simbólicos, ativando a cognição poética: o vazio textual converte-se em espaço fértil para a co‑autoria de significado.
Em paralelo, o paradoxo, figura de pensamento, tensiona opostos para revelar surplus de sentido. Ao afirmar “estou vivo na ausência”, o sujeito convoca a atenção para o entrelaçamento entre presença e ausência, instigando reflexões sobre temporalidade e ser‑para-o-outro.
No âmbito do EIKÓNVERSE, esses recursos são valiosos para potencializar a elasticidade interpretativa, permitindo que o ato de interpretar se desdobre em várias direções simultâneas, ampliando a amplitude da narrativa pessoal e promovendo o florescimento existencial.
Conclusão
Interpretar é, portanto, um processo ativo e criativo, onde o sujeito, por meio de figuras semânticas e sintáticas, modela o emergente, transmutando signos em narrativas existenciais. No EIKÓNVERSE, cultivar esse gesto hermenêutico possibilita ao consulente assumir o papel de autor de sua própria ontopoética, garantindo que sua história seja sempre um horizonte em expansão.
Referências
Gadamer, H.-G. (1960/2005). Truth and Method (J. Weinsheimer & D. G. Marshall, Trad.; 2ª ed.). Continuum.
Merleau‑Ponty, M. (1945/2002). Fenomenologia da percepção (C. F. L. Dayan, Trad.). Martins Fontes.
Peirce, C. S. (1931/1998). Collected Papers of Charles Sanders Peirce (C. Hartshorne & P. Weiss, Eds.). Harvard University Press.
Ricoeur, P. (2005). A metáfora viva. Loyola.
Vasegonia é um neologismo, que denota o processo de fusão entre domínios conceituais heteróclitos — tal como diferentes elementos simbólicos se combinam num “vaso” metafórico — gerando sentidos inéditos. A imagem do “vaso” (do latim vas, “recipiente”) sublinha a ideia de suporte que recebe e integra variadas fontes semânticas, enquanto o sufixo -gonia (do grego gonía, “geração”) enfatiza o caráter dinâmico e gerador desse encontro simbólico.