Introdução
A presença não se limita à mera existência física ou à passagem sensorial pelo espaço; ela constitui‑se como um fenômeno simbólico complexo, onde o corpo e o discurso tecem uma rede semiótica dinâmica. Conforme Merleau‑Ponty (1945/2002), o corpo é o “meio próprio de acesso fenomênico ao mundo”, atuando simultaneamente como sujeito e objeto de sentido. Nesse entrelaçamento, cada gesto, cada movimento do olhar e cada pausa vocal tornam‑se nodos de significado, instigando o intérprete a decifrar camadas ocultas de intencionalidade.
Do ponto de vista da semiótica peirciana, tais manifestações corporais oscilam entre ícones, índices e símbolos (Peirce, 1931/1998), produzindo um παλίμψηστος – palimpsesto – de sentidos que excede o literal. É nessa tessitura que a presença simbólica se revela: não apenas como objeto de observação, mas como acontecimento interpretativo, onde o enunciante e o receptor co‑criam a realidade simbólica compartilhada. Eco (1979) chama atenção para a obra aberta, momento em que o gesto performativo convoca o leitor a um papel ativo, preenchendo lacunas semióticas e ativando a imaginação hermenêutica.
Por fim, o EIKÓNVERSE propõe que essa presença simbólica seja compreendida como um campo de tensões entre visível e invisível, literal e metafórico, atualização e potência. Sob a lente da psicologia positiva, entende‑se que tais expressões corporificadas podem catalisar experiências de sentido, promovendo o florescimento humano quando adequadamente interpretadas e ressignificadas (Seligman, 2011).
A semiose corpórea como locus da presença
O corpo, longe de ser mero invólucro biológico, funciona como palimpsesto semiótico, campo onde signos se inscrevem e se sobrepõem. Segundo Peirce (1931/1998), a triádica distinção entre ícone (semelhança), índice (contiguidade) e símbolo (convenção) mapeia como gestos podem comunicar desde emoções primárias até constructos culturais sofisticados. A prosopopeia ou personificação corporal — figura de pensamento que atribui vida a traços abstratos — intensifica essa semiose, fazendo com que o intérprete perceba, por exemplo, um olhar como voz interior ou uma postura como manifesto ético.
Eco (1979) argumenta que o receptor, ao confrontar o gesto, opera um ato de decifração ativa, preenchendo lacunas deixadas tanto por elipses quanto por paradoxos. Estes últimos, figura de pensamento que apresenta contradições aparentes, criam vórtices interpretativos: um gesto paradoxo pode, simultaneamente, revelar confiança e hesitação, convocando o intérprete a um diálogo interno. Assim, a semiose corpórea não é estática, mas pulsátil — um ritmo semântico que emerge da tensão entre sinal e significado.
Em termos hermenêuticos, a fusão de horizontes descrita por Gadamer (1960) acontece primeiramente no corpo: o intérprete projeta sua historicidade sobre o gesto, enquanto é afetado por ele. Essa co‑constituição encarnada assegura que a presença simbólica seja sempre singular e irrepetível, reafirmando o caráter ontolinguístico do EIKÓNVERSE.
Performatividade simbólica da manifestação
A teoria dos atos de fala de Austin (1962) e sua extensão por Butler (1990) revelam que falar é agir. Quando o consultado pronuncia uma palavra, não está apenas descrevendo uma realidade, mas performando uma nova. No EIKÓNVERSE, cada enunciado público ou privado é entendido como ato performativo, um gesto que modifica o campo de experiência tanto do emissor quanto do receptor.
As figuras de retórica — como a anáfora, que repete termos para criar ênfase e cadência, e a hipérbole, que exagera para intensificar a sensação — atuam como reforços desse caráter performativo. Por exemplo, ao repetir “eu estou presente, eu estou atento, eu estou aqui”, o consulente utiliza a anáfora para fundar um ethos comunicativo sólido, imprimindo ritmo e ressonância ao discurso.
Além disso, Ricoeur (2005) destacado que, na metáfora, acontece um tipo de tropogênese ou germinação metafórica, demonstrando como termos heteróclitos se fundem para inovar o sentido. A manifestação, portanto, não apenas transmite uma mensagem, mas transforma o próprio tecido relacional, promovendo uma experiência vivencial onde o simbólico e o performativo se entrelaçam de modo indissociável. Ele descreve essa dinâmica como uma tropologia germinal, em que:
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Anastomose semântica: o encontro entre termos heteróclitos que, em diálogo, geram sentidos inéditos.
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Potência inovadora da metáfora: a figura inaugura um “campo aberto” de interpretações, mobilizando o leitor a co‑criar significado.
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Elo hermenêutico‑germinal: a metáfora não se reduz ao ornamento; é condição de possibilidade para o advento de novos universos de sentido.
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Dialógica imagem‑discurso
Gadamer (1960/2005) sustenta que toda compreensão é acontecimento linguístico, o que implica que imagem e discurso se co‑constroem num diálogo incessante. No âmbito do EIKÓNVERSE, a imagem pessoal — seja corporificada em trajes, gestos ou posturas — dialoga com o discurso verbal, acarretando ressonâncias simbólicas que reverberam na cosmovisão do interlocutor.
Essa interação dialógica é potencializada por figuras de palavra, como o eufemismo, que suaviza termos dolorosos, e a litote, que nega o oposto para intensificar o sentido (“não estou ausente” em vez de “estou presente” gera uma camada reflexiva). Tais recursos provocam um eco semântico, fortalecendo a coesão entre imagem e palavra, e gerando uma atmosfera interpretativa onde o consulente se torna autor e personagem de seu próprio enredo simbólico.
Ricoeur (2005) também ressalta que a metáfora viva inaugura novos campos de sentido, rompendo com a literalidade e instigando o leitor a reformular seus esquemas interpretativos pré‑estabelecidos. No EIKÓNVERSE, essa dialógica imagem‑discurso configura o cerne metodológico: entender como o conjunto gestual‑verbal pode ser lido como narrativa singular, repleta de camadas simbólicas e pontuada por figuras que intensificam a experiência existencial.
Conclusão
A presença simbólica, ao revelar‑se como sistema de sentidos corporificados e discursivos, exige um olhar hermenêutico capaz de decifrar tanto as marcas visíveis quanto os silêncios performativos. No EIKÓNVERSE, essa abordagem permite reconfigurar narrativas pessoais, promovendo processos de resignificação ontolinguística que potencializam o sentido de ser e de estar no mundo.
Ao aliar semiose corpórea, performatividade simbólica e dialógica imagem‑discurso, estabelecemos um paradigma interpretativo robusto, onde cada gesto e cada palavra constituem uma partitura de significados em constante mutação. Esse entendimento aprofunda a experiência consultiva, guiando o consulente a uma presença autêntica e afirmativa, em consonância com sua identidade simbólica.
Referências
Austin, J. L. (1962). How to Do Things with Words. Oxford University Press.
Butler, J. (1990). Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. Routledge.
Eco, U. (1979). A estrutura ausente. Martins Fontes.
Gadamer, H.-G. (1960/2005). Truth and Method (J. Weinsheimer & D. Marshall, Trad.; 2ª ed.). Continuum.
Merleau‑Ponty, M. (1945/2002). Fenomenologia da percepção (C. F. L. Dayan, Trad.). Martins Fontes.
Peirce, C. S. (1931/1998). Collected Papers of Charles Sanders Peirce (C. Hartshorne & P. Weiss, Eds.). Harvard University Press.
Ricoeur, P. (2005). A metáfora viva. Loyola.
Seligman, M. E. P. (2011). Flourish: A Visionary New Understanding of Happiness and Well‑Being. Free Press.